Preconceito no Metal: precisamos falar sobre isso

Se você gosta de rock e acompanha o mínimo sobre o estilo musical, então não teve como ficar alheio à polêmica do momento, que já vem durando há algumas semanas. Uma rápida recapitulação em vídeo para aqueles que estavam passando as férias em outro planeta neste período: Durante o Dimebash 2016 (festival anual em homenagem ao ex-guitarrista do Pantera, Dimebag Darrell, assassinado em 2004), o vocalista Phil Anselmo (ex-Pantera, atual Down) termina sua apresentação e encerra o evento com a saudação nazista, seguida das palavras White power (“poder branco”). O vídeo, gravado via celular por um espectador do show, viralizou:

https://www.youtube.com/watch?v=BhmLtkWd5AA

A comunidade do Metal logo se manifestou contra a saudação e palavras de Anselmo. O primeiro a se pronunciar à respeito foi o vocalista e guitarrista do Machine Head, Robb Flyn, que tocou na mesma noite e contestou a desculpa esfarrapada de Phil, que alegou ter sido uma brincadeira fora de contexto, já que eles bebiam vinho branco nos bastidores antes de entrarem no palco.

https://www.youtube.com/watch?v=56sn0RILZIs

Vários outros artistas do meio também se pronunciaram a respeito, como Sebastian Bach, o vocalista do Slipknot, Corey Taylor, a guitarrista do Evanescence, Jen Majura, o guitarrista do Anthrax, Scott Ian, e o companheiro de banda de Anselmo, o guitarrista do Down, Pepper Keenan. Além de todo esse barulho, graças a atitude de Phil, o Down foi “desconvidado” a tocar no festival FortaRock, na Holanda, e um show em sua própria cidade, Nova Orleans, foi cancelado pelos organizadores. Dias depois do ocorrido, o cantor lançou na Internet seu pedido de desculpas:

https://www.youtube.com/watch?v=GOQlL19rCaE

Ok, vamos ao lugar comum e incontestável: o nazismo, com todo seu pacote de preconceitos e ódios que servem de base para sua “filosofia da raça pura ariana”, é uma postura absolutamente condenável e imperdoável desde o fim da Segunda Guerra Mundial, que deve, sim, ser combatida com diálogos, esclarecimentos e tentativas de fazer o outro compreender que tais preceitos como “superioridade ao próximo” baseando-se em cor da pele, religião, gênero, preferência sexual ou seja lá o que for são uma grande babaquice.

Agora que estamos de acordo com o que pensamos sobre o nazismo e preconceitos em geral (se você não concorda com o que foi dito acima, sinta-se à vontade para ir embora agora), vamos avançar mais um passo sobre o que nem todos estão cientes: o preconceito em geral (e o “pacote de preconceitos” do nazismo faz parte disso) não fica alojado em uma parte consciente do nosso cérebro: ele é plantado pelos ensinamentos da cultura ao nosso redor que absorvemos quando pequenos (valores que nossos pais e escolas nos ensinam quando somos crianças, os tipos de amizades que temos à medida que crescemos, os produtos de mídias que consumimos – TV, livros, jornais, revistas, etc. – o que vemos e ouvimos em geral, enfim, tudo que absorvemos nessa idade de formação da nossa personalidade). Ele se enraíza no nosso subconsciente e se transforma em “conceito”, ou seja, em um valor de caráter que você usará como lente para guiar suas decisões e comportamentos pelo resto da sua vida. Por isso é tão normal ouvirmos contradições do tipo “olha, eu não sou preconceituoso, mas acho que esse negócio de ‘orgulho negro’ é muito alarde, uma verdadeira tempestade em copo d’água. A escravidão já acabou, caramba!” O preconceito já está tão incrustado na psique dessa pessoa que ela sequer percebe sua própria incongruência ao falar esse tipo de coisa sem pensar ou se informar um pouco mais sobre isso – a partir do momento em que ela tiver percepção do quão profunda é essa raiz em sua mente, inicia-se um processo de reversão de pensamento. Um exercício diário e muito difícil, mas não impossível.

De acordo com o próprio Phil Anselmo em seu vídeo de desculpas, “quem me conhece sabe que eu não sou assim”. Ao ter, aparentemente, reconhecido seu erro, devemos perdoar e esquecer? Não. Ao levantar sua mão direita e gritar “Poder Branco”, ele invocou signos ainda mais poderosos e perigosos que o de um ou outro tipo de preconceito: ele exaltou a ideologia do nazismo, um modo de pensar que, desde a Segunda Grande Guerra, tornou-se (e com razão) o símbolo da vilania máxima, da anti-humanidade praticada por humanos. Um inimigo perigoso demais para deixar que seja manifestado sem represálias. Mesmo que Anselmo tenha feito o que fez “sem pensar” ou “só por brincadeira, que acabou tomando proporções que não imaginou que tomaria”, não importa: a semente desse conjunto de preconceitos está lá e, em um momento de euforia como o do fim do Dimebash 2016, quando o consciente dá alguns segundos de folga, é que essa semente germina.

Estou usando Anselmo e todo esse caso apenas como exemplo de algo que aconteceu por muito tempo no meio do Metal em geral, e ainda acontece: por mais que a filosofia do rock seja a de agregar, muitos de seus porta-vozes e fãs segregam outras pessoas por conta de certas características: negros de cabelo crespo não podem gostar de Metal porque não tem como deixar o cabelo crescer; mulher não gosta de metal de verdade e aquelas que dizem que gostam são só “posers” (vai ouvir Bom Jovi, que é o seu lugar!); glam rock é coisa de viado… Durante a minha adolescência, fui “testemunha ocular” ou mesmo vítima (por conta da pele morena e do cabelo não-liso) de vários casos desse tipo. As vertentes mais pesadas / extremas do rock estão repletas desses preconceitos, enraizados em suas origens, muito por causa do purismo de seus fãs (que, ocasionalmente, também se tornam estrelas desses estilo musical), que se esforçam manter intocáveis as características originais do “movimento”, independente dos povos ou classes sociais que atingem. Falei um pouco mais desse “purismo” dos fãs em um texto que escrevi para o Troca o Disco.

Não entendeu? Eu explico: o chamado “power metal” foi difundido por bandas como Helloween, uma banda formada originalmente por cinco alemães de pele branca e cabelos grandes. Ok, a pele branca e o cabelo liso são características típicas dos alemães e é normal que os fãs alemães que queiram imitá-los consigam isso com facilidade, mas, quando sua música chega ao Brasil e conquista fãs tupiniquins, um povo tão diversificado de características, começa a separação: aqueles que tem pele branca e conseguem deixar os cabelos lisos quando grandes têm todo direito de gostar de Helloween pois, afinal, eles podem se travestir como os caras sem parecer ridículo (???). Quem não se encaixar nesses quesitos, que ouçam Living Colour.

helloween_livincolour
“Tá vendo? Tem música pesada pra todo mundo! Deixem o ‘Metal Verdadeiro’ para quem realmente pode ‘vivê-lo’.”

É claro que essa visão limitadíssima melhorou muito desde os anos 80 – enxergo como um grande marco nesse sentido, a entrada do vocalista Derrick Green no Sepultura em 1997, mostrando a todos que é possível sim ter pessoas de todo tipo fazendo metal de qualidade e tornando-se referência no estilo – como o Sepultura já era uma banda de sucesso internacional, o restante do mundo passou a prestar mais atenção no som e menos na cara dos integrantes de bandas que nasciam em outros países. Os discursos dos atuais artistas desse meio também tornou-se mais “inclusivo”, principalmente com o surgimento de grupos inteiramente formados por mulheres ou com presenças femininas entre seus integrantes, principalmente no vocal (Nightwish, Whitin Temptation, as brasileiras do Volkana, etc.) que mostraram ao preconceito inerente no meio que elas também podem admirar e fazer música pesada de qualidade – afinal, até então, lugar de mulher era na plateia, levantando a camiseta e mostrando os peitos para o vocalista da banda de hard rock.

derrick_volkana
Derrick Green, que entrou no Sepultura em 1997, e a banda brasileira Volkana, formada em 1987: diversidade surgindo no Metal brasileiro.

Muito ainda, porém, precisa ser feito para que o preconceito no Metal seja cada vez menor: se, por um lado, a diversidade tem sido cada vez maior entre os artistas, é preciso que haja também uma aceitação de igual tamanho por grande parte dos fãs, que, sem pensar o real motivo, torcem o nariz para determinadas bandas ou mesmo vertentes do rock apenas por que “não é ‘Metal de verdade’”, bem como os discursos dessas bandas precisam ser analisados dentro e fora do palco. Rock também é cultura que atinge massas, portanto, é capaz de formar parte do caráter de jovens que estão moldando suas pisques nesse momento. Se tu és responsável por aquilo que cativas, seja responsável também pela sua própria cabeça e pela filosofia que vai pregar em sua arte – se ela vier carregada de preconceito, as próximas gerações não vão deixar de estender o braço direito e gritar “poder branco” em um show de rock.