Sobre Keith Emerson e o perfeccionismo fatal

Apesar de ter sido uma surpresa e tanto, a morte do tecladista Keith Emerson, um dos fundadores do Emerson, Lake & Palmer, só não é mais chocante que o modo como ela aconteceu: segundo a confirmação dos médicos que examinaram seu corpo, Keith realmente suicidou-se com um tiro na cabeça. Emerson vinha sofrendo de problemas como uma doença degenerativa nos músculos de seu braço direito que o impediam de tocar como antigamente e complicações cardíacas – tudo isso o levou a uma depressão profunda, que o deixava preocupado e angustiado com uma possível futura turnê.

“Keith não estava se sentindo bem na noite de quinta. Ele tinha bronquite então enfiou-se na cama”, disse a namorada de Keith, Mari Kawaguchi, em entrevista ao Daily Mail. “Sua mão e braço direito vinham apresentando problemas há anos. Ele se submeteu a uma operação há alguns anos para tratar do mal muscular, mas a dor e os problemas nervosos em sua mão direita estavam piorando. Ele tinha shows marcados no Japão e, mesmo contratando um tecladista de apoio, Keith estava preocupado. Ele leu todas as críticas online e era uma alma sensível. No ano passado ele se apresentou em concertos e as pessoas postaram comentários como ‘Eu acho que ele deveria parar de tocar’.”

O modo de sentir e pensar de Emerson me lembrou o filme Whiplash – Em Busca da Perfeição, que estreou nos cinemas brasileiros em 2015. A película conta a história do estudante de bateria Andrew Neiman, que sonhava em ser o maior baterista de jazz de sua época. Ao entrar para o conservatório de música, ele tem que lidar com o professor e maestro Terence Fletcher, um verdadeiro “carrasco” com seus alunos, sempre exigindo nada menos que a perfeição de todos eles, custe o que custar. Apesar das brigas e desavenças entre os personagens, eles tinham algo em comum: a busca obstinada pela perfeição técnica e musical, chegando ao nível da loucura, resultando em sacrifícios físicos e, por que não dizer, mentais também.

Durante a divulgação do filme, o diretor Damien Chazelle revelou que a história é “um pouco autobiográfica”: além de diretor, Damien também é baterista que, assim como o personagem principal, estudou em um conservatório e teve um professor exigente como Fletcher. Durante seu tempo na escola, um novo sentimento passou a tomar conta de sua mente ao pensar na bateria, na música, nos estudos: o medo.

“Medo de errar na condução. Medo de errar o andamento. E sobretudo, medo do meu regente”, conta Damien em uma entrevista ao Tribuna da Bahia. “Com Whiplash, a minha intenção foi fazer um filme sobre a música que se assemelhasse a um filme de guerra ou a um filme de gângsteres – onde as armas são substituídas por instrumentos, em que as palavras fossem tão violentas como armas e a ação se desenrolasse não em um campo de batalha, mas em uma sala de ensaios de uma escola, ou em um palco de uma sala de concertos.”

Arrisco a dizer que, na maioria dos casos, a busca pela perfeição técnica é uma mistura de amor à música com ego. Os resultados artísticos são maravilhosos, mas essa jornada rumo à plenitude e o reconhecimento como “um dos grandes músicos/ instrumentistas de sua época” cobram seu preço. No caso do fictício Andrew (lembrando que é inspirado no diretor do filme), ele passou por maus bocados de saúde mental e física e privações sociais até chegar a ser visto pelo seu professor como um igual; no caso de Chazelle, ele não aguentou a barra e desistiu da vida de músico profissional para abraçar a carreira do cinema, outra de suas paixões. Já Keith Emerson atingiu esse objetivo: ele tornou-se um dos maiores tecladistas/ pianistas da música contemporânea por suas composições e performances virtuosas no ELP – que músico não quer ser visto assim, afinal?

Um problema tão grande quanto chegar no topo, no entanto, é permanecer lá. A partir do momento em que se viu incapaz de se superar cada vez mais ou mesmo de continuar tocando como sempre tocou, Keith não se perdoou – e nem os fãs. Um músico perfeccionista e extremo como ele pode ter sua personalidade e sua visão de si mesmo perante o mundo totalmente calcada em seu talento e em sua habilidade como instrumentista. A partir do momento em que sua condição de saúde o impede de explorar aquele potencial que levou tantos anos de sacrifício para atingir, aliada às críticas que recebeu como uma espécie de confirmação de que seu tempo chegou ao fim, seu psicológico não aguentou, fazendo com que sua depressão se agravasse, levando-o a realizar atos extremos como um suicídio, por exemplo.

É claro que poucas coisas encantam os amantes de música mais do que uma melodia composta com esmero e executada com perfeição – eu mesmo estou escrevendo essas linhas ao som do violonista Craig D’Andrea, cujas composições não seriam possíveis se ele não tivesse estudado seu instrumento com afinco por anos. A questão que tanto os músicos quanto os fãs devem aprender (e eu, como fã, me incluo nessa parte) é que não podemos, jamais, colocar o perfeccionismo à frente da apreciação musical.

Música é arte, e não esporte. Só importa se o instrumentista toca milhões de notas por segundo se a composição em questão exigir isso – não o público, sempre ávido por mais “medalhas de ouro” em corridas sonoras ou técnicas difíceis; não o ego que faz com que você queira ser o Paganini do século XXI; mas sim a composição, a melodia, o feeling. Sem este ingrediente chamado coração, os seus arpejos e escalas super complexas, rápidas e bem executadas vão virar apenas uma masturbação de instrumento onde somente quem a faz terá prazer. Keith Emerson, assim como seus colegas Carl Palmer e Greg Lake, sabiam disso e compunham tanto canções longas e complexas como Tarkus como canções simples e igualmente divertidas como Lucky Man.

Lembre-se disso antes de criticar um artista e dizer que ele deveria “parar de tocar”. Essa é uma decisão apenas dele e ninguém – nem ele mesmo – deve ser tão duro com isso se tanto amor pela música ainda pode ser explorado…