Para ler com os ouvidos

Muito se tem falado sobre a volta das velhas mídias como o vinil e, recentemente, a fita K7 e, com elas, o costume de parar para se apreciar a música em vez de usá-la apenas como “pano de fundo” para atividades. Isso é ótimo, pois a música merece mesmo lugar de destaque no nosso cotidiano pelas suas multifaces: música é arte, é comunicação, é linguagem e é, também, veículo para incríveis histórias – e não estou falando apenas das letras que acompanham as melodias, mas isso é papo para outra ocasião.

Aproveitando o resgate deste costume de imitar o cachorrinho do logotipo da RCA e ficar parado em frente ao aparelho de som para apreciar os decibéis que ele joga em seus ouvidos, quero propor um exercício diferente de apreciação: que tal tentar compreender a música como uma narrativa que está sendo apresentada? Toda música, enquanto obra artística, se propõe a passar uma mensagem (qual mensagem, exatamente, cabe a você interpreta-la), mas para facilitar esse primeiro passo em direção a uma nova maneira de ouvir música, selecionei aqui alguns álbuns que foram realmente pensados dessa forma: aqui, todas as músicas e letras de cada obra, quando juntas, formam uma história completa (tentarei evitar referências muito óbvias como The Wall, do Pink Floyd, ou Tommy, do The Who, apesar de serem igualmente obrigatórias – pronto, falei). Muito provavelmente você já tem um ou mais desses vinis ou CDs em sua estante, mas talvez nunca tenha aceito o convite que essas bandas e artistas fazem: que você pare para prestar atenção e ouça essa história que é cantada em rimas em vez de contada em prosa.

 

Vários artistas
Ghost Brothers of Darkland County

O escritor Stphen King escreveu essa história exclusivamente para que John Mellecamp compusesse as letras e músicas sobre ela. Com produção de T. Bone Burnett, vários artistas como Elvis Costello, Sheryl Crow e Kris Kristofferson entre outros cantaram os capítulos da lenda dos dois irmãos do Mississipi que se odiavam a ponto de se matarem em 1967 – de acordo com a lenda, seus fantasmas continuam assombrando o local até hoje, porém, o terceiro irmão dos fantasmas, ainda vivo e que viu tudo, finalmente resolve contar o que realmente aconteceu…

 

Queensryche
Operation: Mindcrime

O álbum de 1988 ainda é, ao lado de Empire, o grande marco da banda na era Geoff Tate. Musicalmente abrindo portas para bandas que, mais tarde, usariam e abusariam das técnicas instrumentais como Dream Theater, Operation: Mindcrime conta a história de Nikki, um rapaz drogado que, ao ser recrutado pelo misterioso Dr. X, passa a fazer parte de uma organização assassina que elimina líderes políticos pelo mundo para substituí-los por outros que atendam ao seu propósito.

 

Dream Theater
Scenes from a Memory

A segunda parte da cultuada música Metropolis, do álbum Images and Words, não rendeu apenas mais uma faixa de 10 minutos, mas todo um álbum que, se não for a obra prima do Dream Theater, está no “top 5”. Aqui nós conhecemos o perturbado Nicholas que, em sessões de terapia e regressões, descobre que, em sua vida anterior, foi uma mulher chamada Victoria, misteriosamente assassinada. Sua vida atual não encontrará paz enquanto não solucionar este crime do passado…

 

Arcade Fire
The Suburbs

O músico Will Butler, membro do Arcade Fire, tentou “extrair os sons e melodias” dos subúrbios americanos para compor esse álbum e o resultado foi uma história do dia a dia dessas pitorescas regiões dos EUA em forma de música. Se você fechar os olhos e prestar atenção enquanto ouve, conseguirá visualizar em sua mente todo o estereótipo desse ambiente que os filmes hollywoodianos nos apresentam.

 

David Bowie
The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars

A saga do alienígena que veio à Terra para pregar o amor livre, a androgenia e o hedonismo e morreu como um rock star vítima de sua própria mensagem é uma história incrível que, em tese, começa e termina nesse disco. Quem é fã de Bowie sabe que, na verdade, a lenda de Ziggy continua por mais alguns trabalhos do artista… Mesmo assim, vale a pena ouvir esse conto pela voz do Camaleão!

 

Evelyn Evelyn
Evelyn Evelyn

A cantora Amanda Palmer e o músico Jason Webley se juntaram (quase que literalmente) para criarem duas personagens e contarem sua história: a história das irmãs siamesas Eve e Lyn, que amalgamavam até mesmo suas identidades e seus nomes, chamando a si mesmas de “Evelyn”. Quase sempre tratando-se como se fossem uma só, elas se apresentavam cantando e tocando em um circo de horrores, até que, em uma noite tempestuosa… Curiosidade a parte: durante os shows desse projeto, Amanda e Jason se fantasiavam como as duas irmãs siamesas e se apresentavam “grudados” no palco, tal qual as personagens que criaram.

 

The Who
Quadrophenia

Como se não bastassem praticamente terem escrito a primeira ópera-rock da história, esses ingleses trazem mais uma história louca. Mesmo! O álbum de 1973 traz, agora, a história do jovem Jimmy, que sofre de esquizofrenia e possui quatro personalidades diferentes em sua mente durante a era Mod – não por acaso, cada personalidade é um arquétipo de cada membro do The Who.

 

Stone Sour
House of Gold & Bones – Part 1 & 2

O vocalista Corey Taylor soltou a imaginação para escrever uma aventura surrealista. Um homem acorda em um mundo estranho, com criaturas o perseguindo e, ao entrar em um refúgio, encontra um ser de fumaça fumando um cigarro que lhe passa uma missão: ele precisa encontrar a casa de ouro e ossos para se lembrar quem é, descobrir o que está fazendo ali e o que está acontecendo. Esse enredo poderia ser contado em qualquer mídia, mas foi, primeiro, apresentado na forma de um álbum duplo da banda Stone Sour, lançado em duas partes – posteriormente, a história foi adaptada para os quadrinhos.

 

Genesis
The Lamb Lies Down on Broadway

O projeto ambicioso de Peter Gabriel foi o primeiro passo que resultou em sua saída do Genesis. A história que ele escreveu para este álbum é praticamente autobiográfica, apesar de se passar com o fictício porto-riquenho Rael em uma dimensão alternativa para onde ele é levado a fim de resgatar seu irmão. Muitas ocorrências, criaturas e lugares descritos vêm de sonhos de Peter que, por sua vez, remetem à sua infância. O cantor já quis levar essa mesma história para a telona e chegou a conversar com o diretor William Friedkin (Operação França e O Exorcista), mas o projeto nunca foi adiante.

 

Marillion
Misplaced Childhood

Diz a lenda que as letras de todos os álbuns do Marillion com a participação do primeiro vocalista, Fish (ou seja, os quatro primeiros) remetem a fases da vida do cantor – o terceiro disco da banda, pelo menos, é o mais assumido ao se tratar de uma história. As músicas falam de infâncias difíceis, amores perdidos, da dificuldade de crescer, da desilusão da vida e de uma luz no fim do túnel.